domingo, novembro 30, 2008

O mistério da luz fustiga-nos os olhos









Vestígios


noutros tempos

quando acreditávamos na existência da lua

foi-nos possível escrever poemas e

envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído

pelas salivas proibidas - noutros tempos

os dias corriam com a água e limpavam

os líquenes das imundas máscaras



hoje

nenhuma palavra pode ser escrita

nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras

ou se expande pelo corpo estendido

no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se



onde se pode - num vocabulário reduzido e

obsessivo - até que o relâmpago fulmine a língua

e nada mais se consiga ouvir



apesar de tudo

continuamos e repetir os gestos e a beber

a serenidade da seiva - vamos pela febre

dos cedros acima - até que tocamos o místico

arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos

numa euforia torrencial


Al-Berto

segunda-feira, novembro 24, 2008

O ciclo da vida

















Cores de Outono

O Verão foi-se despedindo.
O frio chegou.
O Tempo mudou.
Uma nova estação está abrindo.

As árvores vão-se despindo
das suas folhas amarelecidas,
folhas do verde desvanecidas
que, suavemente, vão caindo.

O chão vai-se cobrindo
de pequenas folhas envelhecidas
ora amarelas ora tingidas
de verde, castanho, vermelho se esvaindo.

A vida destas folhas se esvaindo
cobre, protege as sementes encolhidas
no solo húmido, escondidas.
O Ciclo da Vida continua infindo.


António Fernando Vilar Barbosa




quarta-feira, novembro 19, 2008

Se eu quiser falar com Deus

Dias realmente úteis

Às vezes, demasiadas vezes,
a vida assemelha-se a uma repartição cinzenta,
onde os horários se cumprem sem empenho.
Estamos, mas sem compromisso íntimo.
Falamos e fazemos,
mas sentindo o nosso interesse noutro lado.
Vivemos, claro, mas com o coração distante.

Como é necessário tornar realmente úteis
os dias úteis!

Úteis não apenas por imposição do calendário.
Úteis, porque vividos com generosidade e sentido.
Úteis, porque não os atropelamos
na voragem das solicitações,
na dispersão das coisas,
mas sabemos (ou melhor, ousamos) fazer deles
lugar de criação e descoberta,
modo de acção e de contemplação.

É preciso acolher o «inútil»
Se quisermos chegar ao verdadeiramente útil.


José Tolentino Mendonça

segunda-feira, novembro 10, 2008

Cores do Outono










Voz de Outono

Ouve tu, meu cansado coração;
O que te diz a voz da Natureza:
— «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel deveza,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,


(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» —


Antero de Quental