segunda-feira, março 31, 2008

Aqui na minha janela



Navio


Tenho a carne dorida
Do pousar de umas aves
Que não sei de onde são:
Só sei que gostam de vida
Picada em meu coração.
Quando vêm, vêm suaves;
Partindo, tão gordas vão!

Como eu gosto de estar
Aqui na minha janela
A dar miolos às aves!
Ponho-me a olhar para o mar:
—Olha-me um navio sem rumo!
E, de vê-lo, dá-lhe a vela,
Ou sejam meus cílios tristes:
A ave e a nave, em resumo,
Aqui, na minha janela.



Vitorino Nemésio

sábado, março 29, 2008

Não te perdi?

Flor que não dura

Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.


Fernando Pessoa

terça-feira, março 25, 2008

H2O






Lição sobre a água


Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.



António Gedeão

domingo, março 23, 2008

Ressuscitou!

Anúncio Pascal

Acendam todas as luzes:
Foram vencidas as trevas
e a madrugada ergue-se da noite do sepulcro!

Sejam dispensadas todas as sentinelas:
Cristo saiu, vitorioso, do sepulcro,
sem que os guardas se apercebessem

Cantem as mais belas canções de alegria:
O Anjo anuncia às mulheres:
“Não está aqui! Ressuscitou!”

Limpem todas as lágrimas:
O Senhor, crucificado e morto,
está vivo!

Deixem sair o sol:
A Verdade e a Justiça
venceram pelo Amor sacrificado!

Ensaiem o cântico do novo êxodo:
Cristo libertou-nos
da morte e do pecado!

Varram todos os caminhos:
O Senhor anda por aí, ressuscitado,
a caminho da nossa aldeia!

Ponham mais um prato na mesa:
Ele vai aceitar o nosso convite
para cear connosco!

Cessem todos os desesperos:
O sofrimento e a morte
são caminhos de vida!

Coroem de flores todas as cruzes:
O patíbulo de ignomínia
converteu-se em trono de vitória!

Encerrem todos os processos:
Deus está solidário
com a causa do Homem!

Juntem-se todos na praça da cidade:
Hoje nasceu um novo Povo,
que há-de ser luz, sal e fermento!

Convidem toda a gente para a festa:
Em Cristo, novo Adão, já renascemos
pela água e pelo Espírito!

Dêem-se todos as mãos:
Em Cristo, Deus fez-se, definitivamente,
Deus-connosco!

Ponham-se todos a caminho:
“Ele vai à nossa frente
para a Galileia!”

Abram as arcas do coração:
Só as vidas poupadas serão inúteis!
Levem a toda a Terra a Boa-Nova!


Lopes Morgado

sexta-feira, março 21, 2008

CRUZ


Eu estava lá

Era fácil de mais falar de um homem
de seus trinta e tal anos, nazareno,
bom, amigo dos pobres e doentes,
contra quem os poderes se entenderam
e o seu povo, instigado, pediu morte.

Era fácil dizer que fora preso
do outro lado do Cédron, no Getsémani;
que o processo correu pelas mãos de Anás
e Caifás, ambos Sumos Sacerdotes,
e chegou ao pretório de Pilatos.

Era fácil dizer: Judas traiu-o,
Pedro disse que nunca o tinha visto,
e Pilatos, não tendo muito embora
encontrado em Jesus causa de crime,
o entregou para ser crucificado.

Era fácil dizer que o tribunal
se encontrava no sítio do Lajedo,
“Gabbathá” em hebraico; e que Jesus
carregou com a cruz para o lugar
da Caveira, em hebraico dito “Gólgota”.

Era fácil dizer que tudo isto
sucedeu muito longe, há dois mil anos,
ou culpar os Judeus por essa morte.
Hoje, tarde de Sexta-feira Santa,
fiz de turba na igreja, e gritei alto:

«Não o soltes! Queremos Barrabás!
A Jesus, crucifica-o! Crucifica-o!»
Estava lá e ouvi Jesus gritar;
«Tenho sede» e não fui dessedentá-lo;
e «Meu Deus, porque é que me abandonaste?»

e não disse: “Sossega. Não estás só.
Eu, teu Pai e tua mãe estamos aqui.”
Nem lhe dei o meu ombro para Ele
saber que és Deus-connosco, ao dizer «Pai,
nas tuas mãos eu entrego o meu espírito.»

Era fácil dizer. Mas eu não disse.



Lopes Morgado


(Dia Mundial da Poesia)

quinta-feira, março 20, 2008

A importância da humildade

LAVA-PÉS DA IGREJA

«Ó Senhor! Não só os pés,
mas também as mãos e a cabeça!»

Pedro (Jo 13,9b)



Os Pés

Senhor, Pedro talvez não precisasse:
Ainda não sentira o pó da História.
Dois mil anos depois, se me não lavas,
Ninguém verá em mim a tua Esposa.

Senhor, lava meus pés – os pés descalços
Com que fui proclamar teu Evangelho.
Deixei que muito pó se lhes pegasse,
E não o sacudi como aconselhas.

Partindo sem cajado nem alforge,
Servi-me e rodeei-me de prestígio,
De bens e de poder, mais confiando
Nas minhas estruturas, que no Espírito.

Senhor, lava estes pés de Mensageira
Da paz e do perdão, e não da espada,
Que às vezes pretendeu impor-te à força
Com armas, guerras santas e Cruzadas.

Senhor, lava estes pés, a quem foi dado
Um guia para a Terra Prometida,
E às vezes preferiram o regresso
À antiga servidão, aquém da vida.

Novamente, Senhor, de pés lavados,
Contigo irei passar o Mar Vermelho
Do teu suor de sangue e do teu Sangue,
Ali deixando, enfim, o mundo velho.

Senhor, lava meus pés: sou tua Igreja
E quero tomar parte no teu Reino.
Admite-me, Senhor, à tua mesa
Na Páscoa sempre nova da tua Ceia.


Lopes Morgado

terça-feira, março 18, 2008

Há flores que de ti dependem




Um Dos Capítulos

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.

Albano Martins

domingo, março 16, 2008

Ensina-nos...

“Senhor, ensina-nos o lugar
que, no eterno romance
iniciado entre Ti e nós,
ocupa o baile especial
da nossa existência.
Revela-nos a grande orquestra dos teus desígnios,
na qual Tu semeias notas estranhas,
na serenidade do que Tu queres.
Ensina-nos a vestir todos os dias
a nossa condição humana
como um vestido de baile
que nos fará amar por Ti
todos os seus pormenores, como jóias
que não podem faltar.
Faz-nos viver a nossa vida,
não como um jogo de xadrez,
em que todos os movimentos são calculados,
não como uma partida em que tudo é difícil,
não como um teorema
que nos faz quebrar a cabeça,
mas como uma festa sem fim
em que se renove o encontro contigo.
Como um baile,
como uma dança,
entre os braços da tua graça,
na música universal do amor”

Madeleine Delbrêl

sábado, março 15, 2008

Aranha



A Aranha

A ARANHA do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.


Fernando Pessoa


terça-feira, março 11, 2008

Porta de madeira...




com almofadas entalhadas dos inícios do século XVII, com símbolos sacros, mitras episcopais e custódias.
Convento de Santa Clara - Funchal

sábado, março 08, 2008

Dia Internacional da Mulher




Ser mulher

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!


Gilka Machado

segunda-feira, março 03, 2008

As casas... Funchal


Oh as casas as casas as casas


Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
ela morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo